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01-09-2005        Visão
Madison, Wisconsin, 6 horas da manhã de 24 de Agosto. Ligo o rádio para ouvir as notícias na rádio pública norteamericana. No meio das notícias do costume, uma notícia de imediato angustiante: uma reportagem a partir de Coimbra, talvez pela primeira vez na história desta rádio. O repórter, impressionado pela destruição de tanta beleza ambiental, espanta-se que não haja em Portugal um registo fiável da propriedade florestal, o que inviabiliza o ordenamento e a imposição de medidas de prevenção. Fala ainda da passividade da justiça e das suspeitas da cobiça dos especuladores imobiliários pelos terrenos peri-urbanos ardidos. Nada do que ouço é novo. Mas a indignação não é menor por isso. E é partilhada, como confirmo ao ler a mensagem de um leitor assíduo das minhas crónicas nestas páginas. Fala-me da actualidade da que escrevi em 8 de Agosto de 2003 e, depois de a transcrever, desabafa: "tudo continua o seu voraz caminho de destruição, seja ela ambiental, económica ou paisagística, sem que uma voz de comando diga basta, impondo assim uma autoridade agregadora da revolta que a todos tocará".
Não resisto a transcrever um extracto dessa crónica: "O flagelo do Verão voltou em força. É assim desde há quase trinta anos. O "verão quente" de 1975 ficou na nossa história contemporânea por ter sido um período de grande radicalização da vida política que incluiu vários atentados à vida e à propriedade. Do que pouca gente se lembrará é que foi um verão igualmente quente pelos incêndios que então assolaram o país, e que o padrão da sua ocorrência tornou claro que a grande maioria era de origem criminosa. Foram muitas as denúncias públicas, numa comunicação social a celebrar pouco mais de um ano de liberdade, e foram muitas as ameaças aos autores das denúncias, a revelar que os interesses económicos por detrás dos incêndios eram fortes e estavam organizados. Muitos factores militavam então contra uma eficaz repressão criminal: a instabilidade política e social; a desorganização da nossa polícia de investigação; o facto de este tipo de criminalidade económica, além de ser novo e exigir técnicos de investigação para o qual os polícias não estavam treinados, ocorrer no verão, com parte da força policial de férias, e flagelar populações camponesas com pouco peso social e político.
Nos últimos vinte e oito anos o quadro criminal repetiu-se, com algumas oscilações, e complexificou-se. Desde o início, puderam verificar-se dois interesses económicos na devastação da nossa riqueza florestal. O primeiro esteve ligado à conversão rápida da floresta camponesa (o que envolvia a eucaliptização maciça) e à sobrexploração dos camponeses (comprando ao desbarato madeira queimada depois vendida ao preço quase normal). O segundo interesse aflorou nalgumas áreas suburbanas, onde a indústria imobiliária chocava com as exigências do ordenamento do território ou a protecção de parques naturais. Nos últimos dez anos, um terceiro interesse emergiu: o da indústria de produtos e serviços de combate aos incêndios. Muitos dos factores, que no início determinaram a ineficácia da justiça criminal, foram entretanto superados, pelo que é verdadeiramente intrigante a impunidade com que ano após ano os criminosos florestais (e sobretudo os seus mandantes) actuam entre nós."
Dois anos depois, os conimbricenses têm uma preciosa arma democrática nas mãos: nas próximas eleições autárquicas não votem em candidatos que não se comprometam a promulgar legislação que proíba a construção na área ardida durante trinta anos. A sugestão é do repórter norteamericano, invocando o caso espanhol onde tal legislação será adoptada no Outono.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos