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10-09-2005        Visão
Nos últimos quatro anos assisti nos EUA a dois acontecimentos gravíssimos, causadores de morte e destruição, um deles provocado por mão humana - o ataque às Torres Gémeas - o outro, natural - o furacão Katrina, que acaba de destruir Nova Orleães. Para além da dimensão das tragédias, estes dois acontecimentos não parecem ter nada em comum. Mas as aparências iludem. Ambos revelam, cada um a seu modo, as enormes fragilidades da segurança interna do país mais rico e poderoso do mundo. Ao contrário do que se tem dito, ambos os acontecimentos foram previstos com detalhe. Os relatórios secretos da CIA vinham apontando para a iminência de um ataque dramático a Nova Iorque por parte da Al Qaeda, usando a aviação civil. Do mesmo modo, são muitos os relatórios das agências de protecção civil que nos últimos anos chamaram a atenção para a necessidade de reforçar os diques de Nova Orleães, e preparar acções de evacuação em grande escala. Em ambos os casos, o governo não levou a sério os alertas. No caso de Nova Orleães, a imprevidência foi particularmente grave, uma vez que, ainda no ano passado, o governo reduziu em cerca de 50% o orçamento da manutenção das infra-estruturas de protecção da cidade.
As respostas do governo a estas catástrofes revelam também alguns traços comuns, igualmente inquietantes para os cidadãos americanos. A resposta aos atentados em Nova Iorque foi a invasão do Afeganistão, seguida da do Iraque. A eficácia (para nem falar da justificação jurídico-política) destas medidas está hoje tragicamente posta em causa. A maioria dos cidadãos norte-americanos pensa que o presidente lhes mentiu quando justificou a invasão com a existência de armas de destruição maciça. Esta convicção vai certamente alastrar ainda mais depois da patética confissão de Colin Powell de que foi ludibriado (e ludibriou o mundo) quando mostrou na ONU armas que não existiam, considerando agora esse discurso uma mancha negra na sua carreira.
No que respeita à tragédia de Nova Orleães, os norte-americanos estão indignados com a incompetência e ineficácia da resposta do governo. Como foi possível que milhares de pessoas tenham esperado entre três e sete dias para serem evacuadas ou receberem água potável e alimentos? As comparações com tragédias no estrangeiro são inevitáveis. Quando o tsunami assolou a Ásia, o socorro chegou em 24 horas. Quando, no ano passado, Cuba foi varrida por um violento furacão, o governo evacuou mais de um milhão de pessoas sem uma única perda de vidas. E, para muitos, o fantasma do Iraque volta à superfície. O Wall Street Journal, conservador, interroga-se: como é possível que uma divisão da força aérea estacionada próximo de Nova Orleães, preparada para chegar a qualquer parte do mundo em 18 horas, tenha levado vários dias para chegar à cidade? Como é possível que, no país com o exército tecnologicamente mais avançado, as polícias das diferentes localidades usem sistemas de transmissão incompatíveis e não haja pilhas de substituição quando a energia eléctrica falha? O mesmo jornal, na sua edição de 9 de Setembro, noticia que começou já a corrida ao ouro dos contratos milionários para a reconstrução de Nova Orleães, e não deixa de mencionar que as empresas já contratadas pelo governo são as que foram contratadas para reconstruir . . . o Iraque.
O povo norte-americano vai-se dando conta de que o Estado está cada vez menos disponível para garantir o seu bem-estar e segurança. Quando os atingidos são sobretudo os pobres e negros, como aconteceu em Nova Orleães, essa indisponibilidade transforma-se em repugnante indiferença.


Publicado na La Jornada em 18 de Setembro de 2005

 
 
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Boaventura de Sousa Santos