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10-11-2005        Visão
No dia 1 de Dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, no Alabama, Rosa Parks, uma mulher negra, de 42 anos, tomou o autocarro de regresso a casa. Quando interpelada por um branco para lhe ceder o lugar, ela recusou-se e foi presa por isso. Nessa altura, estavam em vigor no Sul dos Estados Unidos as leis da segregação racial. Nos autocarros, os negros – dois terços dos utentes dos transportes públicos – tinham de comprar o bilhete ao condutor, voltar a sair do autocarro e entrar pela porta de trás depois de os brancos estarem instalados. As organizações que lutavam pelo fim da segregação decidiram usar o caso de Rosa Parks para pôr em causa a constitucionalidade das leis segregacionistas. Assim, explodiu, a nível nacional, o movimento negro pelos direitos cívicos e políticos. Rosa Parks foi a enterrar na semana passada com honras de heroína nacional.
Na aparência, o contraste entre este caso e a agitação social em França não podia ser maior: de um lado, o êxito das políticas de integração social, do outro lado, o fracasso. São difíceis as comparações por estarmos perante processos sociais muito diferentes. Mas se o caso norte-americano tem hoje algum interesse para os europeus, este reside menos no seu êxito do que no seu relativo fracasso. Apesar dos esforços notáveis dos últimos cinquenta anos, a discriminação racial continua hoje a ser uma realidade penosa na sociedade norte-americana: a população afro-americana continua a preencher os estratos sociais mais baixos, as suas escolas são, em geral, de qualidade inferior às das populações brancas, os afro-americanos têm uma esperança de vida em média inferior à da população branca e constituem uma vítima privilegiada do sistema penal (25% dos afro-americanos entre 15 e 35 anos passaram algum tempo na prisão). Estes factos podem ajudar-nos a ter uma ideia da magnitude dos problemas para que as sociedades europeias se devem preparar. Em geral, eles decorrem da intensificação recíproca de dois factores de hierarquização social: a classe social e a raça ou a etnia. As sociedades capitalistas assentam na desigualdade social, mas esta tende a ser menor quando são levadas a sério as políticas de igualdade de oportunidades, assentes nos sistemas nacionais de educação, saúde e segurança social. Historicamente, estas políticas foram mais levadas a sério na Europa que nos EUA (os jovens dos subúrbios de Paris têm acesso a um sistema nacional de saúde que está vedado a 40 milhões de cidadãos norte-americanos). Mas as políticas estão hoje a ser postas em causa com a chamada crise do Estado-providência. Há dinheiro para combater o terrorismo, mas não para reparar os apartamentos de habitação social onde, pelo seu estado de degradação, são frequentes os acidentes, como os que, nos últimos meses, provocaram a morte a 60 pessoas nos mesmos bairros onde agora ocorrem os tumultos. A alternativa que tem vindo a ser imposta é a de conferir ao mercado uma presença muito maior nas tarefas de regulação social que antes cabiam ao Estado. Com isto, as políticas de igualdade de oportunidades dão lugar, no melhor dos casos, às políticas de emprego e de empregabilidade. Ora, para o mercado, é legítimo transformar um preconceito étnico-racial num critério de eficiência económica. Não é necessariamente por ser racista que o empregador tende a recusar um candidato qualificado mas com um nome suspeito ou a viver num bairro suspeito. É, em parte, por isso que o desemprego nos subúrbios de Paris é superior ao dobro da média nacional.
Quando as desigualdades económicas se cruzam com as discriminações étnico-raciais, os conflitos sociais tornam-se potencialmente muito perigosos. Como se está a ver em França, não podem ser resolvidos pela repressão e nem sequer por meras políticas de emprego. É preciso actuar preventivamente e enfrentar na raíz os preconceitos étnicos, raciais e religiosos. Não nos deve dar que pensar que a população africana, em Portugal, não chegando aos 2% da população, seja quase 10% da população prisional? Dada a diversidade de etnias e crenças em causa, faz sentido confiar o Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas a um padre católico, como aconteceu até há pouco, e agora a alguém indicado pelo mesmo lobby, a Igreja Católica? As políticas que proponho visam uma integração pluralista (oposta quer à assimilação quer aos guettos multiculturais): políticas activas de emprego articuladas com acção afirmativa; educação intercultural; promoção da diversidade identitária e cultural no espaço público (e não apenas no espaço privado) como veículo de intermediação com o sistema político nacional e local; política de nacionalidade – são portugueses os filhos dos imigrantes nascidos em Portugal – que fortaleça, pela diversidade, a identidade portuguesa ou a identidade europeia. Quando é que a cachupa e a feijoada serão também pratos portugueses?

 
 
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Boaventura de Sousa Santos