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22-12-2005        Visão
O meu balanço não é do que passou mas antes do que vai passar, a partir dos sinais que nos foram sendo deixados em 2005. Não pretendo fazer previsões, antes inquirir em que medida o futuro veio até ao presente. Quais as imprevisibilidades mais importantes que nos deixa?
A China. Até 1830, a balança comercial da China com a Europa era favorável à China. Os últimos cento e cinquenta anos foram anos de humilhação e de construção de um sistema alternativo ao Ocidental. Desde a década de 1980, assistimos à emergência de um fenómeno novo: a combinação entre o comunismo mais autoritário com o capitalismo mais selvagem, o que poderíamos chamar estalinismo de mercado. Em 2005, este modelo revelou toda a sua pujança: as viagens espaciais; crescimento económico três vezes o dos EUA; investimento massivo em África. O que é aqui imprevisível? Ao contrário dos seus congéneres ocidentais, os manuais de estratégia militar chinesa estabelecem que a vitória não consiste em vencer o inimigo na batalha. Consiste em miná-lo por dentro, absorvê-lo de modo a que a batalha nunca tenha lugar. Irão os manuais ser seguidos? Se os chineses retirassem hoje os seus aforros da economia norte-americana, esta sofreria um profundo abalo.
Células estaminais. É uma outra guerra entre o Ocidente e o Oriente, uma guerra científica, com pouca ciência e muita política. A Coreia do Sul tem, como projecto nacional, tornar-se a maior potência mundial na clonagem de células estaminais humanas para fins terapêuticos. Para fortalecer a sua posição, procurou alianças com cientistas ocidentais, talvez desconhecendo que o Ocidente não cede de barato a sua primazia. O escândalo acaba de estalar, no plano ético (uso de ovócitos de investigadoras do laboratório) e no plano científico (houve fraude na prova de produção de células estaminais humanas personalizadas?).Envolve cientistas, média, empresas de biotecnologia e os serviços secretos. Esta é uma área em que a linha que divide a lógica da ciência da lógica do mercado é demasiado ténue para não temermos que o nosso corpo se transforme na próxima (pós-humana?) linha de montagem.
Exclusão e colonialismo. Nada de novo nesta frente: continuou a agravar-se a desigualdade social. Pelo menos, 8 milhões e 300 mil indivíduos ficaram felizes com esta notícia. É o número de indivíduos que têm investimentos superiores a um milhão de dólares, os chamados indivíduos EVL (de elevado valor líquido). Segundo o Financial Times, o seu número aumentou em 60% nos últimos sete anos. Relativamente nova foi a combinação entre exclusão social, colonialismo e racismo. Os protestos sociais em França mostraram até que ponto o passado colonial da Europa continua a persegui-la. Já tinham ocorrido em Inglaterra e é possível que surjam noutros países, inclusive naqueles que foram colónias e se tornaram independentes através do massacre de populações nativas e da subalternização de alguns grupos de imigrantes. É o caso da Austrália que termina o ano nas notícias com a violência racista anti-árabe nos subúrbios de Sidney. Como vai o Norte continuar a defender-se do Sul, cuja destituição provoca? Engenho repressivo não lhe falta. O Departamento de Segurança Nacional dos EUA acaba de ser autorizado a construir 1.100 kilómetros de vedações ao longo da costa Sul para impedir a entrada de "latinos".
Comércio livre. 2005 foi o ano de todas as frustrações para os países ricos. Não foi possível evitar o fracasso da reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio que se acaba de realizar em Hong Kong. Depois de Cancún e Hong Kong, a OMC tornou-se um cadáver adiado. O facto novo é que os países do Sul conseguiram o mínimo de união (para o que contribuiu muito o papel do Brasil, Índia e África do Sul) para poder fazer ouvir o óbvio: o comércio livre tem sido a fraude com que os países ricos têm imposto aos países pobres os termos de comércio mais desiguais desde o colonialismo. Estes factos, combinados com o novo protagonismo da China e da Venezuela, fazem-nos especular sobre se não estaremos perante a emergência de um novo movimento dos não-alinhados.
Terrorismo, democracia e libertação. É multissecular a tradição do Ocidente de violar os direitos humanos sob o pretexto de os defender. Estará a história a mudar? Se a guerra é o terrorismo dos fortes, será que o terrorismo é a guerra dos fracos? Poderá eliminar-se o terrorismo sem eliminar o terrorismo de Estado? 2005 mostrou que a democracia tem duas histórias. Uma é da sua subordinação aos interesses do capitalismo: impõe-se no Iraque, tolera-se a sua violação no Uzbequistão e liquida-se (se possível) na Venezuela. A outra história é a da luta democrática dos povos pela justiça social. As eleições na Bolívia testemunham essa luta. Qual das histórias vai prevalecer em 2006?
Em 2005 o futuro veio ao presente, mas, como é seu timbre, não veio para ficar. Em vez de previsões certas, temos imprevisibilidades decisivas.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos