Centro de Estudos Sociais
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02-03-2006        Visão
Um grupo de jovens menores maltratou sadicamente, apedrejou e espancou até à morte o transexual brasileiro Gisberto, um sem abrigo de 45 anos. Aconteceu no Porto. Há poucos anos, o líder indígena Guadino Pataxó tinha ido a Brasília participar numa marcha a favor da reforma agrária. A noite estava amena e decidiu dormir no banco da paragem de autocarro. De madrugada, um grupo de jovens acercou-se dele enquanto dormia, regou-o com gasolina e queimou-o vivo. Na polícia, confessaram que o fizeram para se divertirem e pediram desculpas por não saber que ele era um líder indígena; pensavam que ele era "um qualquer sem abrigo". Que há de comum entre estes dois casos de violência gratuita e as caricaturas dinamarquesas? A mesma incapacidade de reconhecer o outro como igual, a mesma degradação do outro ao ponto de o transformar num objecto sobre o qual se pode exercer a liberdade e o gozo sem limites, a mesma conversão do outro num inimigo perturbador mas frágil que se pode abater com economia das regras da civilidade, sejam elas as que governam a paz ou as que governam a guerra.
As sociedades modernas assentam no contraste social, a ideia de uma ordem social assente na limitação voluntária da liberdade para tornar possível a vida em paz entre iguais. As ideias de cidadania e de direitos humanos são a expressão deste compromisso. As tensões entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade e as contradições entre eles e as práticas sociais que os desmentem constituem o cerne da política moderna. Como o grupo social dos reconhecidos como iguais era inicialmente muito restrito (os burgueses do sexo masculino), a grande maioria da população (mulheres, trabalhadores, escravos, povos colonizados) estava fora do contrato social e, portanto, sujeita ao despotismo dos que tinham poder sobre ela. As lutas sociais dos últimos duzentos anos têm sido lutas por inclusão no contrato social. Com o tempo, as lutas pela igualdade socio-económica, protagonizadas pelos trabalhadores, foram complementadas pelas lutas pelo reconhecimento das diferenças, por parte das mulheres, das minorias étnicas e religiosas, dos homossexuais, etc.
Este movimento ascendente de inclusão e de civilidade está hoje bloqueado por via de uma combinação perversa entre capitalismo neoliberal e suas consequências (exclusão social, migrações) e a teologia política conservadora hoje dominante nas três religiões abraâmicas (cristianismo, judaísmo e islamismo). Paulatinamente, a solidariedade politicamente organizada é substituída pelo individualismo, e a filantropia e a celebração da diversidade, pela intolerância: em vez de cidadãos, consumidores e pobres; em vez de justiça social, a salvação; em vez do ecumenismo, o dogmatismo; em vez da hospitalidade, a xenofobia; em vez de conflitos institucionalizados, a violência do crime e da guerra.
O despotismo pré-moderno está, assim, a ser reinventado na sociedade e nos indivíduos, tanto nas macro-relações entre países ou religiões, como nas micro-relações na família, na empresa ou na rua. Os poderosos e os despossuídos são degradados por igual, ainda que com consequências muito diferentes. Os despossuídos recorrem à violência ilegal, tanto contra os poderosos como contra os ainda mais despossuídos. Os poderosos recorrem à violência que legalizam pela invocação de princípios que, sem surpresa, estão sempre do seu lado. São Tomás de Aquino diria deles o que disse dos cristãos do seu tempo. Que padecem do habitus principiorum:o hábito de invocarem obsessivamente os princípios para se poderem dispensar da sua observância na prática.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos