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09-11-2006        Visão
Depois da inesperada fragilidade revelada na primeira volta, a vitória retumbante de Lula na segunda volta deixou o mundo estupefacto. É um acontecimento político notável e o mérito cabe por inteiro a Lula. Só ele poderia reacender o entusiasmo da mobilização em milhares de militantes magoados e desiludidos pelos desacertos da sua política durante o primeiro mandato. Mas as razões do seu êxito são bem mais bem mais profundas e merecem reflexão. Antes de mais, a vitória de Lula representa um "choque de realidade" para as elites políticas que governaram o Brasil até 2002. A distância e a arrogância que as separa do país real e a acumulação histórica de ressentimento que isso criou entre as classes populares não lhes permitiu aproveitar as fragilidades do candidato Lula. 58 milhões de brasileiros, na sua grande maioria pobres, preferiram correr o risco de votar num governo que os pode desiludir a votar num governo que, à partida, já não os consegue iludir. A distância que separa as elites das classes populares não é apenas económica, apesar desta ser enorme num dos países mais injustos do mundo. É também cultural e racial. Isto explica o êxito da política simbólica de Lula, a sua capacidade de ampliar o impacto político de medidas relativamente tímidas, devolvendo a auto-estima a milhões de brasileiros humilhados não apenas pela fome, mas também pelas barreiras no acesso à educação e pelo racismo insidioso da suposta democracia racial.
Mas a vitória de Lula tem ainda um outro significado particularmente relevante para os portugueses na actual conjuntura política: a falência da receita neoliberal das privatizações, uma falência tão rotunda que o próprio candidato de direita teve de se afastar dela. Na última década, os brasileiros assistiram impotentes à delapidação do património nacional, à sub-avaliação sistemática do valor das empresas públicas para permitir negócios chorudos e fortunas instantâneas, ao agravamento das taxas de utilização dos serviços para garantir os lucros elevados das empresas e sem qualquer contrapartida na qualidade das prestações. O caso da electricidade é paradigmático: o aumento das taxas correu de par com a degradação dos serviços, o que significa que a factura da privatização foi paga pelos cidadãos. Aliás, neste domínio, os brasileiros tiveram a mesma sorte que os norte-americanos. O respeitado New York Times acaba de mostrar que a privatização do sector eléctrico nos EUA, ao mesmo tempo que permitiu lucros fabulosos, não se traduziu até agora em qualquer melhoria para os consumidores, antes pelo contrário. No caso do Brasil, o processo foi tão descarado que as privatizações foram rebaptizadas pelo povo como privataria. A vitória de Lula significa que é preciso encontrar outro modelo em que os ganhos da eficiência se convertam em benefícios de todos. E isto é tão válido no Brasil quanto em Portugal.
O segundo mandato de Lula terá de ser diferente do primeiro. A partir de 1 de Janeiro, Lula terá de começar a preparar o pós-lulismo: uma forma de governação de esquerda que não dependa da capacidade de um líder carismático para disfarçar com o discurso da anti-política a incapacidade para substituir a velha política por uma nova política. Essa nova política tem de ser preparada de um modo consistente e o primeiro passo é certamente a reforma do sistema político e a reforma do Estado. Só elas permitirão concretizar as políticas de justiça social, cultural e racial em que os brasileiros depositaram a sua esperança. Mas tudo isto só acontecerá se os brasileiros não se limitarem a esperar.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos