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18-01-2007        Visão
Em causa no referendo à despenalização do aborto devem estar os direitos e a dignidade das mulheres e o valor de uma maternidade responsável, e não considerações de ordem financeira. Não é aceitável que se reduza uma importante questão de saúde pública e de direitos a uma cifra, e muito menos que cálculos tão tendenciosos quanto errados acabem por ser usados como argumento. A verdade é que, incapazes de convencer os portugueses do mérito da sua causa, os partidários do NÃO decidiram recorrer ao cálculo financeiro para aterrorizar os seus concidadãos com ameaças num domínio para estes muito sensível: o serviço nacional de saúde. Aproveitando o economicismo miserabilista do actual governo, saíram a terreiro para afirmar que a despenalização acarretará um custo de cerca de 20 a 30 milhões de euros, dinheiro que seria retirado de fins médicos mais meritórios. O Ministro da Saúde corrigiu este custo, baixando-o para um terço, o que, por si, revela a relativa arbitrariedade dos cálculos.
Mesmo do ponto de vista economicista, que todos concordaremos não pode estar em causa numa decisão destas, os custos da despenalização do aborto só podem ter significado na medida em que forem comparados com os custos da manutenção da situação actual. Vejamos os custos decorrentes do aborto clandestino no serviço nacional de saúde e no sistema judicial. Segundo a Associação para o Planeamento Familiar, 20% das mulheres que recorrem ao aborto clandestino têm problemas de saúde, com 27% a exigir internamento. Muitas ficam com problemas crónicos de saúde que também se traduzem em custos. No que respeita à criminalização actual, se a proibição for para cumprir - o que só por hipocrisia sistémica não ocorrerá - a investigação, acusação e julgamento dos autores do "crime contra a vida intra-uterina" envolve 3 fases com custos muito elevados para o sistema judicial. Façamos o exercício. Na fase de inquérito temos os seguintes actos: participação criminal; deslocação de agentes policiais; inquirição de testemunhas (em regra, 6 a 8 pessoas: médicos, parteiras, companheiro, familiares, etc.) e da mulher arguida, exames periciais, relatório policial, acusação por parte do Ministério Público. Esta fase envolve agentes policiais (estimativa de 3 a 4 dias), magistrado do MP (1 dia); funcionários do MP e um perito médico (1 dia). A fase da instrução (não obrigatória mas habitual nestes casos) envolve audição de testemunhas, interrogação da arguida, novo exame pericial, debate instrutório e despacho de pronúncia. A estimativa é de 3 dias para o juiz de instrução, 2 dias para o magistrado do MP e 2 a 3 dias para o funcionário judicial e perito médico. Finalmente, a fase do julgamento envolve a audiência do julgamento, sentença e leitura da sentença, cerca de 3 dias de trabalho de 3 juízes (tribunal colectivo), do magistrado do MP e dos funcionários.
Se contabilizarmos apenas o trabalho dos magistrados e apenas na primeira instância, a estimativa é de 15 dias de trabalho por processo, o que, ao custo de € 100 por dia - salário médio dos magistrados que acompanham estes casos - custará ao Estado € 1500. Ou seja, basta considerar uma fracção dos custos da criminalização do aborto para se concluir que, mesmo só sendo incriminada uma parcela das "criminosas", os custos da penalização são superiores aos da despenalização. Isto sem contar com os custos para o país decorrentes do tempo que as polícias, para se dedicarem à investigação do aborto, deixam de dedicar à investigação da corrupção e da evasão fiscal.
Este exercício mostra que, se o bom senso imperar, o argumento moralmente repugnante dos custos deixará de ser utilizado nos debates sobre o referendo.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos