Centro de Estudos Sociais
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15-02-2007        Visão
Como era de esperar, a taxa de abstenção não permite que o referendo seja vinculativo, o que em termos legislativos não significa muito. Para além do seu efeito específico, o referendo valeu como um momento ampliado de descodificação do país, quer pelo que se disse, quer pelo que se silenciou. Em meu entender, as principais lições do referendo são as seguintes.
Primeira. Confirma-se que Portugal é um país de desenvolvimento intermédio que só à distância pode acompanhar as principais transformações políticas e culturais da Europa. É uma condição estrutural de longa duração histórica a que muito dificilmente podemos escapar. Esta condição manifestou-se a vários níveis. Por um lado, as forças conservadoras que sempre impediram a modernização do país só a muito custo (após dois referendos e a humilhação pública de mulheres "criminosas") foram desalojadas e para isso foi preciso sacrificar o significado principal do referendo (ver adiante). Por outro lado, num momento em que os portugueses vêem o seu quotidiano, a sua segurança e a sua qualidade de vida serem desestabilizados e degradados pelo desemprego e pelas reformas da educação, da saúde, das pensões e do reordenamento neoliberal do território, não lhes é exigível que se comportem como os seus vizinhos europeus, cujo nível de bem-estar está cada vez mais longe do deles. Para quê votar sobre a interrupção voluntária da gravidez quando se confrontam diariamente com a interrupção involuntária da sua qualidade de vida e das suas expectativas de um futuro digno? Lúcidos como são e funcionando muito bem da cabeça, os portugueses viram no entusiasta incitamento do primeiro-ministro, a que votassem em massa no Sim, uma cortina do fumo destinada a compensar e ocultar, com uma aproximação simbólica à Europa (o alinhamento com a Europa na questão do aborto), o afastamento real em relação ao nível de vida material dos europeus actualmente em curso.
Segunda. Ao contrário do que brandiu a direita, a esquerda portuguesa mostrou uma enorme sagacidade e agilidade. Era preciso conquistar o magma da moderação que parece ser a única arma contra a direita conservadora e era preciso também não assustar a comunicação social bem pensante que transforma esse magma em opinião pública. Fê-lo com maestria. Mas com isso sacrificou o principal: o direito da mulher a optar. O argumento da humilhação dos julgamentos surtiu efeito, mas reduziu a mulher a vítima injusta, impedindo que ela fosse vista como realmente é: um sujeito autónomo e racional dona das suas opções. Perversamente, a campanha do sim acabou por invisibilizar tanto a mulher decisora quanto os repugnantes posters do Não, representando o feto como se ele não estivesse num corpo de mulher e dele não dependesse. Isto foi possível devido a uma outra característica da condição semi-periférica da sociedade portuguesa: a fraqueza da sociedade civil organizada em torno da luta contra a discriminação e a injustiça social e, em especial, a fraqueza dos movimentos feministas e de mulheres.
Terceira. A Igreja Católica continua a perder terreno na Europa. Restam-lhe agora a Polónia, Irlanda e Malta. Por sua vez, a igreja portuguesa perdeu a compostura e dividiu-se entre a Igreja de Ratzinger e a Igreja de José Policarpo. Assistimos, no entanto, e esse é um sinal de optimismo, a um vasto movimento de desobediência cívico-religiosa por parte de católicos que não toleram mais a hipocrisia na questão mais vasta da moral sexual. Neste domínio, a Igreja foi uma sombra a que, pela contra-mão, continuam a dar vida gente admirável como Frei Bento Domingues, José Manuel Pureza, Ana Vicente e Anselmo Borges.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos