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23-10-2016        Jornal de Notícias

Ciclicamente irrompe no espaço público a notícia de que nos espera uma vaga de inovação tecnológica que vai fazer desaparecer o mundo tal como o conhecemos, emergindo um admirável mundo novo em que as máquinas substituem os humanos em tarefas produtivas. Estranhamente, o que poderia ser uma promessa de abundância e felicidade surge quase sempre como uma ameaça.

O discurso político dominante entusiasma-se excessivamente com as tecnologias e tende a credenciar um determinismo infundado e desumano. No passado dia 19, na Conferência organizada pelo Ministério do Trabalho que assinalou o Centenário da sua criação, coube-me a tarefa de comentar a comunicação do Secretário de Estado do Trabalho da Alemanha, num painel intitulado “O Futuro do Trabalho e o Modelo Social Europeu”. Introduzi os meus comentários com as seguintes três questões: i) qual a origem das elevadas taxas de desemprego e da perda de direitos no trabalho com que nos deparamos, em particular em Portugal, e como lhes responder?; ii) como analisamos e como respondemos à chegada de novas tecnologias e à provável emergência de uma nova vaga de automação?; iii) como podemos e devem os perspetivar o futuro do Trabalho?

Na origem da elevada taxa de desemprego que temos em Portugal esteve alguma nova vaga tecnológica? No fundamental, não. Chegamos aqui, em primeiro lugar, porque: se adotaram políticas económicas e de emprego erradas; poderes não regulados agiram em favor de alguns com prejuízo para a maioria da população; nos últimos anos se aplicou um “Programa de Ajustamento” que não resolveu nenhum dos nossos problemas estruturais e agravou grande parte de outros, designadamente a dívida pública e privada; porque diminuiu perigosamente a intensidade da democracia dentro e fora do espaço do trabalho; porque na UE temos tido uma vaga de desvalorização salarial, praticada com mais ou menos intensidade em todos os países em simultâneo, que comprimiu o rendimento dos assalariados e acelerou a concentração do rendimento e da riqueza.

O chapéu do conceito “tecnologias” tanto é utilizado de forma amputada para significar apenas o digital, como alargado para meter nele uma multiplicidade de componentes, nomeadamente, a robotização e a automação. Nas plataformas digitais temos mera reorganização do trabalho, com pouco ou nenhum aumento de produtividade, enquanto na robotização e automação existe eliminação ou substituição do trabalho com aumentos de produtividade e, logo, exigências de discussão, por exemplo, sobre as implicações de uma nova Divisão Internacional do Trabalho, sobre a utilização dos ganhos obtidos com as máquinas na melhoria das políticas salariais e sociais e sobre sistemas fiscais com base mais alargada.

Não se pode aceitar como natural, o admirável mundo novo, composto de dois tipos de seres humanos, reminiscente da distopia descrita por de Aldous Huxley no seu livro com aquele título: os humanos alfa (possivelmente poucos), donos de máquinas que trabalham sozinhas, e os seres humanos ypsilon (possivelmente muitos), donos nem sequer de si mesmos, entregues aos mínimos da providência social. Quem assim vê as coisas nem sequer pergunta: quem compraria e consumiria os produtos e serviços cada vez mais abundantes, oferecidos por máquinas que dispensam o trabalho humano, de forma a assegurar que os humanos alfa pudessem continuar a investir nas máquinas que devoram seres humanos?

Felizmente, a humanidade continua a ser capaz de distinguir entre o que pode e deve ser feito e entre o que podendo ser feito, não deve sê-lo. Face a inovações tecnológicas não estamos condenados a uma escolha entre a adaptação ou a morte.

No trabalho, há que discutir as suas novas formas de organização e prestação, mas também: a estrutura do emprego; as qualificações; a identificação e a responsabilização dos atores que surgem de novo no trabalho e seus papéis; os poderes em presença em cada contexto e as relações de poder entre eles; e as velhas e novas expressões dos processos de negociação/ conflito/ compromisso.

A inovação tecnológica só é positiva quando há decisões políticas que a colocam ao serviço das pessoas.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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