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16-01-2016        Expresso    [ pág. 34 ]

Investigadora em Ciências Sociais traça um retrato aterrador do hospital

Pode até desejá-la, em desespero, pela falta de humanidade a que está sujeito, que piora se os familiares reagirem. Há lá muitos profissionais competentes, humanos, abnegados, mas cúmplices, que se demitem, não denunciam nem confrontam a falta de humanidade de apenas alguns. Fica-se na dúvida se o juramento de Hipócrates implica um compromisso para com o doente, individual, ou se numa perspetiva cooperativa, para com o colega.

Os idosos são vítimas comuns. Podem ser deixados a sufocar, em morte lenta, completamente sós, numa maca, com uma fila de médicos sentados à sua frente escrevendo nos computadores, familiares no exterior, impedidos de os acompanharem ou de pedirem assistência espiritual. Chegado o final, entregam um saco plástico com os pertences aos familiares e mandam-nos embora, assunto arrumado, venha o próximo. Ficam amarrados, a doer, cada mão e cada pé para cada lado, violentamente, aos ferros frios de uma maca num corredor de uma enfermaria, durante cinco dias e cinco noites, multiplique por horas e minutos, enquanto lhes praticam atos médicos dolorosos e lhes injetam descuidadamente as mãos que vão fiando inchadas, negras e infetadas, negligenciadas. Podem ser colocados em cadeirões, durante horas, manhãs de inverno, a camisa do hospital apenas sobre o corpo frágil, janelas abertas para cima. Se tentarem fugir para os cobertores da cama, amarram-nos aos cadeirões. Suados, com uma pneumonia, mudam-lhe a camisa e fiam os lençóis húmidos por baixo. Se recusarem ou vomitarem o pequeno-almoço, ameaçam-nos repetidamente que os entubam, mesmo que em todas as outras refeições os familiares os ajudem pacientemente a ingerir os alimentos. Aos idosos, vão falar-lhes sempre aos gritos porque assumem que são surdos. Se tiveram um AVC, com afasia, perturbação da fala, vão ouvir, à exaustão, que são “dementes”, pretendendo justificar alguma violência. Isto pode acontecer-lhe a si, hoje. A um muçulmano com uma metralhadora, chamavam-lhe terrorista... Mas era mais rápido.

Ficam horas a fio, ao frio, nos corredores das urgências, em correntes de ar, sem água, sem comida, sem ajuda para se servirem das instalações sanitárias. Quando lhes dão ordem de internamento, levam-nos a uma arrecadação inóspita e mecanicamente retiram-lhes a roupa e os seus pertences, como nos campos nazis. Depois, seguirá pelos corredores, em silêncio, ninguém lhe vai dirigir a palavra. Os auxiliares conversarão entre si. Você será um número, um apêndice temporário daquela maca e depois de uma enfermaria, não poderá mudar de cama se tiver um doente aos gritos ao seu lado durante 24h, não pode mudar de número. Esse poderá ser o seu leito de morte, que não será necessariamente súbita.

Morrer não é o pior que pode acontecer-lhe em Santa Maria. Os bons profissionais, também profissionais bons, são cúmplices dos profissionais maus, justificam, calam e ignoram, numa atitude corporativa. Aos muitos bons profissionais, profissionais bons, tem de lhes ser devolvidas a face e a voz.


 
 
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Maria Manuela Guilherme



 
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