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31-12-2015        Público

Há muito que o sistema democrático vem abandonando o “debate de ideias” em favor do factor imagem.

Todos conhecemos, em especial os mais velhos, os antigos “cromos da bola” com as respetivas cadernetas com que se entretinha a miudagem, no tempo em que os “game boys”, “playstations” e toda esta parafernália de passatempos da era da internet não existiam nem nos sonhos da mais imaginativa criança portuguesa. Era uma alegria enorme obter o boneco mais difícil que faltava, depois colávamos os cromos com todo o cuidado até se poder contemplar aquela coleção de rostos dos ídolos da bola. Numa época em que a exposição mediática era incipiente, com a televisão (a preto e branco) ainda no início, ver aquelas caras e camisolas coloridas dos seus clubes ajudava a sacralizar os ídolos do futebol e vincava as adesões identitárias dos seus admiradores. Pode dizer-se que as cadernetas de cromos foram uma espécie de prelúdio do império da imagem que se seguiria a partir da década de 1960. Nessa época, a busca de informação e cultura continha uma inevitável carga política, sobretudo em regimes conservadores e repressivos, como o do Estado Novo. Num período de profundas ruturas e viragens culturais a nível mundial, os movimentos de juventude obrigaram a uma reinvenção da política e ao mesmo tempo a uma politização da cultura.

Ora, quarenta anos após a restauração da democracia, a lógica dos cromos não desapareceu; apenas foi reinventada. Os cromos permanecem, embora os ídolos da bola tenham sido substituídos por figurantes cuja imagem se define não pela qualidade da “mensagem”, mas sim pelo “perfil” de uma personagem, em geral fabricada e maquilhada para se encaixar num determinado “cargo”. Ao contrário dos antigos cromos, o estatuto dos políticos atuais, salvo as honrosas exceções, depende mais da sua destreza de ilusionistas do que da sua competência demonstrada.

A recente campanha para as eleições da Associação Académica de Coimbra constitui uma boa metáfora do regresso à era dos cromos. A Lista F, vencedora da eleição com 87,2% dos votos expressos, assemelhava-se de facto a uma “caderneta de cromos”, mas a riqueza do exemplo permite-nos retirar interessantes ilações de cariz político e sociológico. Com cerca de 600 nomes, encimados pelas respetivas fotografias e a indicação das faculdades a que pertencem, a lista foi amplamente difundida, num caderno ilustrado e a cores. Este era, digamos assim, o principal “cardápio” eleitoral. Os candidatos e apoiantes distribuíam-se por treze áreas temáticas, tais como Administração, Comunicação, Cultura, Intervenção Cívica, Desporto, Núcleos, Pedagogia, etc., etc. E entre as seis centenas de contavam-se cerca de 170 cargos de “coordenador”. Sim, é verdade que também existiam os conteúdos e propostas programáticos, mas estas – apresentadas como “propostas de futuro” – eram divulgadas à parte em pequenas folhas A5, destacadas do já referido caderno de fotos e ocupando, portanto, um papel claramente lateral (tudo isso sem pôr em causa a inquestionável competência dos lideres e ativistas da candidatura, sublinhe-se).

O problema não reside tanto no modelo mas sim no contexto. A relação candidatos-eleitorado reflete o tipo de sociedade em que vivemos, e a juventude universitária é o barómetro do país do futuro (e suas elites). Perante uma população estudantil “grosso modo” alheada da vida cultural, associativa e política, não admira que o nível de abstenção tenha atingido o número recorde (ou quase) de 77%. Numa Universidade com cerca de 23 mil estudantes, participaram na eleição apenas 5026 estudantes (cerca de 23%). A “cultura política” (ou falta dela?) que anima estas candidaturas ajusta-se bem a um mundo onde a tendência de voto obedece mais à inevitável “sacralização” do cargo, do poder e do “status”, do que ao valor substantivo das ideias e programas.

Os estrategas das candidaturas – seja para Presidente de uma associação de estudantes seja para Presidente do país –, promovem a fidelização dos eleitores não apenas a partir das redes de relações interpessoais, mas em função da importância simbólica dos papéis sociais e do cargo (segundo a leitura subjetiva do senso comum). O conteúdo discursivo é uma “narrativa” cuja chave descodificadora é o lado estético-expressivo da coisa. Não é a palavra mas a forma. Não é o que se diz mas como se diz. Não é o discurso mas a expressividade que gera empatia e identificação. Esta é uma tendência que se vem impondo e que os média – e quem deles sabe aproveitar-se – exploram até à exaustão, fabricando “audiências”, consumidores e candidatos.

Há muito que o sistema democrático vem abandonando o “debate de ideias” em favor do fator imagem. A imagem pessoal ou do líder partidário tornou-se o elemento decisivo em todos os atos eleitorais. A indústria do “marketing” político que o diga. Mas se durante décadas a imagem dependia ainda dos valores, ideias e propostas políticas, nos últimos tempos a realidade parece mostrar-nos que a imagem constitui o meio e o fim da própria política. E assim o vazio que resta após o sucesso eleitoral do personagem eleito é, com toda a probabilidade, preenchido por poderes e interesses que nunca foram escrutinados. Os eleitorados dos tempos atuais andam cada vez mais “distraídos” e deixam-se encantar pelas aparências de uma imagem, pela “familiaridade” de um rosto bem-parecido ou “bem-falante”. Porém, na sua inocência ou autenticidade, o eleitorado e o poder mediático que o formata produzem, em cada caso, um “estereótipo”, um “boneco”, onde é preciso ser “credível”, isto é, mostrar alguma coerência entre o “cromo” e o “cargo”. Certo certo é que, por mais justa que seja a “proposta”, por mais eloquente que seja o “argumento”, isso, por si só, não elege ninguém nos dias que correm.


 
 
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Elísio Estanque



 
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