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30-04-2015        i

É provável que a vulgarização da expressão «classe média» tenha a sua génese na velha crença popular de que a organização do mundo físico contém sempre um elemento “superior”, um “médio” e um “baixo”. Trata-se da invocação do princípio moral segundo o qual a virtude está no meio, é lá o lugar da justa medida, da moderação e da virtude (por oposição aos extremos, no caso, de um lado a riqueza exagerada, de outro a miséria). Foi a essa luz que a tradição liberal europeia construiu a ideia de modernidade e de progresso: a despeito da “guerra das classes”, a classe média assumiu, nessa perspetiva, o papel de “motor da história” no mundo ocidental. Essa construção performativa e ideológica da “classe média” estabeleceu uma leitura de como deve ser a vida social, inspirada no modelo eurocêntrico, enquanto nos EUA permanecia ainda o velho lema oitocentista do empreendedorismo individual como a via primordial de eleição para colocar a classe média tocquevilliana na senda do Eldorado. Por outro lado, a discussão em torno do conceito de “classe média” implica que se dê visibilidade à dinâmica interna de grupos e subgrupos que escapam à tradicional dicotomia capital-trabalho, mas refletem a componente conflitual da sociedade, quer na vertente socioeconômica quer no campo do status e estilos de vida, marcando as diferenças entre grupos no seio dos estratos intermédios (foi esse o argumento central no meu livro «A Classe Média. Ascensão e Declínio». Lisboa, coleção da Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012).

Vale a pena recordar o papel histórico do movimento operário na construção do modelo europeu de Estado providência, bem como a experiência da revolução russa de 1917 (e do “socialismo soviético”) que serviu de elemento dissuasor, abrindo o caminho ao crescimento da classe média europeia. Num sentido substantivo, pode dizer-se que a luta coletiva (nomeadamente com a ajuda do sindicalismo neocorporativo), por um lado, e o esforço individual, por outro, foram os motores da construção das classes médias. Mas, simultaneamente, foi o poder ideológico da narrativa da meritocracia que reforçou a sua função de “almofada” ou de “zona de amortecimento” dos conflitos estruturais. Todavia, tal como noutras utopias também a ideia de uma sociedade fundada no talento e no mérito começou a desfazer-se no ar nas últimas décadas, à medida que os novos segmentos “instalados” começaram a perverter as regras do jogo mal se apoderaram das cadeiras do poder. Recordando R. Dahrendorf, “mesmo que alguns cheguem ao topo por mérito e talento, fecham as portas atrás de si e passam a querer tudo o resto: não apenas poder e dinheiro, mas também a oportunidade de decidir quem entra e quem fica de fora” (jornal Público “Ascensão e queda da meritocracia”, 02/05/2005). Enquanto essa miragem se desvanecia, ganhava força e visão crítica de uma “classe de serviço” que, mais do que recompensada pelo seu mérito, foi-o pelos “bons serviços” prestados à elite dirigente enquanto fonte de apaziguamento das “classes perigosas”.

Entretanto, a Europa do Sul tem vindo a assistir – irritada ou deprimida – a uma interrupção abrupta dos canais ascensionais da prometida mobilidade: é a perda de segurança, de oportunidades de emprego e de carreira, e a crescente corrosão dos velhos fatores de inclusão. Enquanto as elites e os grupos acomodados nos seus privilégios (e preconceitos) se sentem ameaçados pelos “de baixo”, os que caíram na pobreza vêm os seus sonhos a desfazerem-se. A classe média assalariada tornou-se alvo de uma generalizada precarização e empobrecimento. Por outras palavras, aqueles que durante as décadas “de ouro” conferiram credibilidade à retórica da “mobilidade social” e da “meritocracia”, estão hoje “fora de serviço”. Por isso, na Europa ou na América Latina, os segmentos não instalados das classes médias (em boa parte coincidentes com os novos setores do “precariado”) acumulam frustração: ou se deprimem ou protestam e passam à ação, perante a impotência dos Estados e o autismo dos velhos atores políticos.


 
 
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Elísio Estanque



 
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