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01-12-2014        Plural & Singular

“Convertemos problemas quotidianos em perturbações mentais”. Começava assim a entrevista que Allen Frances, um dos mentores da quarta versão do manual de diagnóstico e estatístico de perturbações mentais (DSM-IV), deu recentemente ao jornal El Pais (Oliva, 2014). Este psiquiatra e autor consagrado, não obstante ser um dos precursores da bíblia psiquiátrica actual, não deixa de tecer críticas ao novo manual de psiquiatria, questiona a crescente medicalização da vida. No seu mais recente livro “Somos todos doentes mentais?” aponta frontalmente o dedo ao lobby farmacêutico, responsabilizando-o por uma espécie de hiperinflação diagnóstica que amplifica o número de comportamentos e problemas da vida quotidiana considerados sintomas de um diagnóstico psiquiátrico. No limite, afirma Frances, todos poderíamos ser considerados doentes mentais e poder-nos-íamos reconhecer em muitos dos quadros clínicos propostos.

Esta reflexão de um dos proponentes do DSM, bem como os trabalhos dos pais da antipsiquiatria, de Thomas Szasz (1961, 1978), Rosenhan (1984), e, entre nós, Miguel Gonçalves (2003), assaltam-me de imediato ao ler a crónica de Pedro Silva Lopes no Jornal Público de 6 de Outubro de 2014. O autor expõe o caso do seu cliente – Carlos, internado compulsivamente numa instituição de saúde mental sem aparentemente ter sido cabalmente avaliado por profissionais de saúde competentes, mas cujo relatório decretou o seu internamento involuntário. A fazer fé neste relato, o internamente de Carlos foi ditado pelos relatos dos seus familiares e pela sua recusa em reconhecer e aceitar estar doente, único sintoma consistentemente observado pelos vários profissionais de saúde. Como consequência, Carlos viu-se afastado durante seis meses do seu ambiente social habitual, prostrado pelos efeitos secundários do tratamento forçado com anti psicóticos injetáveis, impedido de usar o seu computador, tablet e telemóvel, profissionalmente arruinado e psicologicamente deprimido. Pergunto-me se qualquer pessoa não deprimiria em circunstâncias semelhantes.

O prejuízo social, profissional e pessoal do internamento e tratamento de que Carlos foi alvo recordam-nos da perversidade da institucionalização (em si mesma indutora de doença mental), da rotulação, estigmatização e individualização do comportamento disfuncional quando falamos de doença mental (Gonçalves, 2003). A este propósito ocorre-me recordar a experiência levada a cabo por Rosenhan (1984), em que este instrui oito voluntários considerados saudáveis a se apresentarem em diferentes hospitais psiquiátricos alegando ouvir vozes. Sem mais, estes pseudodoentes foram internados com o diagnóstico de esquizofrenia. O que se seguiu ao internamento extravasa, na opinião de Gonçalves (2003), o mero erro diagnóstico. Apesar de surpreendidos pela facilidade com que lhes tinha sido atribuído um diagnóstico e decretado o internamento, estes voluntários começam então a tirar anotações acerca da sua experiência pessoal. Este comportamento, não contrariado pelos técnicos, e para o qual tinham sido instruídos por Rosenhan, foi interpretado como sintoma compulsivo. Começa aqui uma longa narrativa, em que a história de vida destes pseudodoentes é distorcida pelos técnicos de forma a torná-la coerente com o diagnóstico atribuído, e em que comportamentos irrelevantes assumem, no internamento, um significado clínico. A afirmação insistente destes voluntários de que já não ouvem vozes é considerada – como não? – a confirmação mais evidente do diagnóstico atribuído. Assim, o diagnóstico inicialmente atribuído passa a ser critério de análise e fonte explicativa de comportamentos banais, e determina o tipo, frequência e qualidade da interacção dos técnicos com os utentes.

Miguel Gonçalves (2003) lê esta experiência à luz dos conceitos de institucionalização, rotulação e individualização do comportamento disfuncional, ao mesmo tempo que recorda o conceito de ‘mortificação do eu’ introduzido por Erving Goffman ([1961] 2001) para caracterizar o processo pelo qual, no momento de ingresso numa instituição total, o indivíduo é destituído da sua individualidade. Neste seu estudo sobre ‘instituições totais’ nos 1960, Goffman caracteriza o internamento, precisamente pela privação da liberdade, do exercício da vontade individual, do uso bens pessoais, pelo confinamento social, e pelo cerceamento da comunicação e da relação com indivíduos “saudáveis”. Conforme reflete Gonçalves (2003) um ‘cocktail’ não só não terapêutico, como, em si mesmo, patologizante.

Vemos na experiência de Rosenhan arbitrariedade na rotulação, no diagnóstico e na avaliação clínica dos casos. Na verdade, qualquer técnico pode errar. Acredito, todavia, que a sua responsabilidade social não se esgota com um simples pedido de desculpas ao utente e a restituição da sua identidade enquanto “são”. Na verdade, o rótulo que estigmatiza e exclui não desaparece com a mesma facilidade com que foi imposto. O caso de Carlos deve, por isso, servir de reflexão acerca da formação necessária e do poder de decisão e destruição que estes técnicos têm sobre a vida dos utentes. Parece-me assim de bom senso apelar à prudência na atribuição de um diagnóstico, à ética e ao rigor científico dos técnicos que o têm de fazer.

Diagnostica-se com base em quê? O que é, afinal, o desvio? Quem define as normas e os critérios segundo os quais um desvio deixa de ser normal e passa a ser considerado patológico? Não quero deter-me aqui sobre as considerações esclarecedoras de Thomas Szasz (1961, 1978) na senda da resposta a estas interrogações. Tão pouco advogo a sua conclusão de que a doença mental não passa de um mito. Contudo, não posso deixar de assinalar a forma como Szasz aponta a centralidade do sofrimento humano sobre a doença. Não posso esquecer a sua argumentação acerca da medicalização das nossas vidas que transforma comportamentos socialmente indesejáveis em doenças. Afinal, aquilo que, ainda hoje, preside à determinação do que é “anormal” é, embora não exclusivamente, um critério estatístico[1] (Kaplan e Sadock, 1990, 1998) e uma construção social.

Se a função do diagnóstico em psiquiatria é a de agilizar a comunicação entre profissionais de saúde acerca de uma condição, e orientar a intervenção, ele não está, no entanto, isento de perigos. Entre os possíveis perigos, contam-se a administração de fármacos, o estigma social e as consequências físicas, psicológicas e sociais que ambos encerram. Independentemente da validade do diagnóstico clínico, o caso de Carlos mostra-nos, como muito bem sintetiza Allen Frances, que “é muito fácil fazer um diagnóstico erróneo, mas muito difícil reverter os danos que este acarreta”.

Mais de 50 anos volvidos da emergência do movimento da antipsiquiatria, urge refrear o ímpeto diagnóstico que psicologiza problemas quotidianos e os transforma em perturbações. Mais importante do que atribuir um diagnóstico é olhar para o sofrimento. Mais importante que o diagnóstico são as potencialidades que cada um encerra em si, apesar de tudo e “com tudo”[2]. A linha que separa o normal do patológico é, na verdade, muito ténue. “Saudáveis” e “portadores de doença mental” são, acima de tudo, “pessoa”. E esta é uma dignidade que ultrapassa todos os rótulos e aquilo somos capazes de fazer e de produzir.

Referências

Gonçalves, M. (2003). Psicoterapia: uma arte retórica? Contributo das terapias narrativas. Coimbra: Quarteto.

Goffman, E. (2001). Manicómios, prisões e conventos. São Paulo: Editora perspectiva.

Kaplan, H., Sadock, B. (2010). Compêndio de psiquiatria (10 ed.). Porto Alegre: Artes Médicas.

Kaplan, H., Sadock, B. (1998). Manual de psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas.

Lopes, P.S. (2014). Voando sobre um ninho de cucos num manicómio de Lisboa. Consultado em http://www.publico.pt/sociedade/noticia/voando-sobre-um-ninho-de-cucos-num-manicomio-de-lisboa-1671926

Oliva, M. P. (2014) Convertimos problemas cotidianos en trastornos mentales. Consultado em http://sociedad.elpais.com/sociedad/2014/09/26/actualidad/1411730295_336861.html

Rogers, C. (1977). Tornar-se pessoa (4.ª Ed.). Lisboa: Morais Editores.

Rosenhan, D. L. (1984). On being sane in insane places. In P. Watzlawick (Ed.), The invented reality (pp. 117-142). New York: Norton.

Szasz, T. (1961). The myth of mental illness; foundations of a theory of personal conduct, Nova York: Hoeber-Harper.

Szasz, T. (1978). Esquizofrenia. Publicações Dom Quixote



[1] A normalidade assim definida implica que tudo aquilo que se desvie do que é mais frequente e desejável entre uma maioria é um desvio à norma e, como tal, um sintoma. Esta perspetiva, aplicada à saúde (física e mental), foi amplamente rebatida por diversos autores, considerando-se, atualmente, que o critério estatístico, tomado isoladamente, não é suficiente para declarar algo que é incomum como doença. Claude Bernard aparece como um dos críticos a esta perspetiva, e fala de um contínuo entre o normal e o patológico em que o estado patológico é uma variação quantitativa dos elementos cuja presença ou ausência é necessária para que algo ou alguém seja considerado saudável.

[2] Assumo aqui a convicção rogeriana acerca das possibilidades que todo o ser humano tem em si, acerca da sua capacidade inerente de crescer e se superar. Recorde-se, a este propósito, o conceito de “tendência à auto atualização” introduzido por Carl Rogers (1977), segundo o qual todas as pessoas são movidas “por uma tendência inerente para desenvolver as suas potencialidade e para desenvolvê-las de maneira a favorecer a sua conservação e o seu enriquecimento” (p. 159). Esta tendência auto atualizante leva a uma superação contínua dos estados e potencialidades atuais que necessita de relações humanas positivas e favoráveis à valorização do “eu”.