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22-10-2014        Público

No comportamento de multidão, a racionalidade individual é esbatida ou bloqueada, enquanto a irracionalidade é multiplicada, criando um efeito mimético que atinge a “multidão”.

Por casualidade, quando passava há uns dias atrás no Jardim Botânico em Coimbra, num dia chuvoso, apercebi-me da existência de uma ruidosa “festa” em redor do lago artificial daquele parque. Aproximei-me, olhei, vi e fotografei: à volta de uma centena de jovens, a maioria trajada com fato académico, celebravam uma atividade da “praxe”, rodeando o perímetro do lago, onde uns quantos caloiros (eles de um lado, elas do outro) tomavam banho, encolhidos debaixo de água e agarrados ao beiral, alguns a tremer de frio, enquanto os “doutores”, de colher de pau em riste, lhes despejavam colheradas de água pela cabeça abaixo. Alguns já tinham saído, ainda a tiritar e embrulhados em capas, mas quando os interpelei asseguraram-me que estavam ali de espontânea vontade... Uns dirão que isto não é “verdadeira” praxe, outros, como estes, garantem que tudo acontece livre e voluntariamente.

Como sociólogo, direi que não é a consciência do indivíduo que explica as dinâmicas de grupo. E esta é claramente uma daquelas situações em que o contexto da observação é bem mais revelador do que a “opinião” do visado, e em que a expressão facial dos banhistas “voluntários à força” (tal como daqueles que são postos “de quatro” ou alinhados e obrigados a olhar para o chão, proibidos de rir, etc.) diz muito mais do que as palavras balbuciadas sob o olhar do “veterano” ou do “doutor”. Mais: se a resposta individual não diz muito, também a atitude de perseguição dos “culpados” ou acusar todos de “bando de energúmenos” e de “imbecis” não é o melhor caminho para compreender o fenómeno. Não é preciso ser-se sociólogo para se saber que a “vivência” não é um requisito decisivo para um conhecimento rigoroso (às vezes até pelo contrário), tal como não é preciso ser-se escravo para falar de escravatura. Porém, a observação direta destas cenas nas ruas de Coimbra ao longo de quase 30 anos é uma preciosa fonte de informação.

Tribalismo e multidão são aqui duas faces da mesma moeda. Os comportamentos de tipo “tribal”, próprios de comunidades fechadas, ocorrem na sequência de ritualismos previamente montados por algum núcleo de comando (ou no âmbito de uma organização secreta, por exemplo), enquanto os comportamentos de “multidão” tendem a ocorrer em situações de emergência, perante uma ameaça inesperada, uma catástrofe, um incêndio, um ataque, ou um momento de exaltação e excitação coletiva. No primeiro caso, o envolvimento dos participantes pressupõe uma seleção prévia e a existência de ritos de passagem, provas de fidelidade aos valores, princípios e representações por que se rege a coletividade em causa. No segundo, os participantes são levados pela emoção, pelo instinto de sobrevivência ou pelo próprio contexto de exaltação e radicalização fanática (como por vezes ocorre em encontros de seitas religiosas, em ações de gangs ou das claques de futebol, por exemplo). Por vezes, as duas lógicas encontram-se num mesmo ritual, e isso acontece hoje em dia em diversos contextos (sendo as praxes académicas um deles, que não o único).

O lado “tribal” ou “medieval” de algumas destas práticas remete ainda para a componente de “espetáculo”, onde a massa da assistência e em muitos casos os próprios agentes da ação vivem o momento segundo um efeito inebriante de entrega e adesão acrítica à dinâmica do grupo. Há mais de um século que isso foi tema de estudo pela criminologia italiana (Gustave Le Bon, 1895), mostrando que, no comportamento de multidão, a racionalidade individual é esbatida ou bloqueada, enquanto a irracionalidade é multiplicada, criando um efeito mimético que atinge a “multidão”, ou seja, a “massa” envolvida no espetáculo. Jogos e brincadeiras sórdidas desse calibre estiveram e estão presentes ao longo de toda a Idade Média, servindo de entretenimento do povo. Os linchamentos públicos, as cadeias, os suplícios, a exibição do “bizarro”, do deficiente, os jogos que incluem, por exemplo, anões jogados contra a parede, etc., etc., foram durante séculos práticas aceitáveis pelas sociedades (e temas de análise crítica muito atual como as de M. Foucault, N. Elias, entre outros).

É a esta luz que devemos refletir sobre os contornos atuais da “praxe” (ou de adulteração da mesma). A sociedade mudou, os valores sociais alteraram-se, a opinião pública obedece hoje a outros fundamentos, e há uma muito maior visibilidade dos fenómenos sociais. Por um lado, o papel dos média contribui para que a notícia seja o que é chocante para a sociedade, e não as situações comuns e inócuas. Por isso mesmo, são as tragédias (como a do Meco) e os casos associados às praxes que mais contribuíram para despertar a consciência crítica da sociedade em relação aos abusos e práticas que ocorrem sob o signo da praxe. Por outro lado, a própria universidade mudou, abriu-se à sociedade, massificou-se e tornou-se um mercado para onde afluem milhares de jovens, incluindo muitos deles sem qualquer formação ou background cultural adquirido no seio da família de origem. Assim, a universidade é hoje muito mais o espelho da sociedade no seu conjunto do que das suas elites. Enquanto no passado os praxistas eram ao mesmo tempo intelectuais e eruditos, hoje são acima de tudo ignorantes da sua própria história.

A massa dos estudantes está longe de ser homogénea, mas o seu número aumentou a tal ponto que os comportamentos “de massa” se tornaram mais comuns. Concordo que é abusivo “confundir a árvore com a floresta” e “acusar” do mesmo jeito todos os que participam em praxes. Há, sem dúvida, representações e subjetividades muito distintas, mesmo considerando apenas os “praxistas”. Arriscaria, a título de hipótese de trabalho, a existência de quatro tipos distintos: 1. Os “saudosistas” – trata-se sobretudo de ex-estudantes que ficaram com uma memória positiva das vivências da praxe, num tempo em que havia mais “pureza” e rigor na sua aplicação, e também uma cultura académica mais consistente do que a atual; 2. Os “ingénuos” – aqueles e aquelas que vivem os momentos com a atitude bondosa e bem-intencionada de quem apenas se quer divertir, ignorando totalmente o passado e o presente da tradição académica; 3. Os “profissionais” – neste incluem-se o “Dux” e o “Conselho de Veteranos”, que, por vezes, podem exercer algum controlo sobre “excessos”, mas justificam o statu quo na medida em que dele depende o seu protagonismo; 4. E, finalmente, os “fanáticos” – os estudantes que aderem ao ritual da praxe com um espírito de seita, que fazem da exaltação praxista e dos seus ritos o principal espaço de afirmação, de reconhecimento coletivo e de exercício do poder.

Evidentemente que à sociedade chocam sobretudo os comportamentos e rituais que fazem da humilhação o principal condimento do show exibido em público. Todavia, não é apenas a exibição, mas os próprios atos que devem ser condenados e punidos. De resto, o que mais me inquieta enquanto cidadão é a presença de mentes que configuram aquela última categoria a que chamei “fanáticos”. Só a título de curiosidade, encontrei no “perfil” do Facebook de um daqueles meninos “praxistas” que me insultou na rede, toda uma iconografia de referências satânicas, simbologias próprias de organizações secretas e uma linguagem de índole nazi… (e, já agora, a referência a uma claque de futebol). Mesmo que fosse só um, isto parece-me muito preocupante e sintomático dos tempos atuais. Mais preocupante ainda se imaginarmos que pode haver uma correlação direta entre praxes – caciquismo – seguidismo – associativismo – e aparelhismo ou, pelo menos, esta sequência pode inscrever-se nas trajetórias pessoais dos quadros e dirigentes do futuro.


 
 
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Elísio Estanque



 
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