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19-09-2014        Diário de Notícias

A crise da democracia representativa tem uma expressão forte e uma expressão fraca. A expressão forte é a determinação do poder político pelo poder económico, ou seja, o comando do poder da representação por um poder de facto não eleito. A expressão fraca é o défice de representatividade dos órgãos eleitos provocado por técnicas de transformação dos votos em mandatos que distorcem a correspondência entre representados e representantes. A cíclica discussão sobre legislação eleitoral em Portugal não se atreve a tocar na expressão forte desta crise e limita invariavelmente a abordagem da sua expressão fraca ao confronto entre distorções grandes e distorções enormes da representatividade. Estamos de novo num desses momentos. Mas é hora de romper com esta repetida sugestão da gangrena como remédio para a ferida.

Tem muito, mas muito mais peso na crise da democracia representativa em Portugal o facto de todos os governos portugueses do pós-25 de abril – salvo o presidido por Maria de Lurdes Pintasilgo – terem tido na sua composição quadros que vieram da administração do Grupo Espírito Santo ou para ela foram após o desempenho governamental, do que mais dez ou menos vinte deputados ou o desconhecimento de quem seja o 13º candidato da lista do PSD em Lisboa ou o 16º da do PS no Porto. Que a maioria dos eleitos representam, em última análise, os interesses não de quem os elegeu mas de quem manda no país – esse é o núcleo da crise da democracia representativa. E não há revisão da lei eleitoral que o consiga atacar.  Por isso, em nome da democracia, a mais importante reforma do sistema político é a disciplina do sistema económico por um Estado que se lhe imponha e não por um Estado por ele domesticado.

Há, certamente, melhorias a operar relativamente à expressão fraca da crise. Aponto duas que me parecem fundamentais. A primeira é um regime muito mais exigente em matéria de incompatibilidades entre a função de deputado e o exercício de outras atividades. Nesta matéria, o princípio da dedicação exclusiva é o que melhor acautela interferências perversas que minam a democracia. Está na altura de enfrentar com coragem o entrelaçado económico-social  que ganha sempre com a possibilidade de elaboração legislativa à medida do interesse de clientes e amigos. A segunda melhoria é o reforço da proporcionalidade do sistema eleitoral – e não a sua diminuição, sempre querida pelos putativos beneficiados pela redução do espectro parlamentar. Está na altura de encarar com coragem a substituição do método de Hondt por um sistema de proporcionalidade direta e de completar este com a adoção de um círculo nacional único de recuperação dos votos sobrantes dos círculos distritais.

Claro que isto é exatamente o contrário do que pretendem os defensores dos círculos uninominais e da diminuição do número de deputados. Quem está desse lado, dá direitos de monopólio político eterno aos dois lados do mesmo centro e nega a diversificação das posições em disputa. Esse fascínio pela recuperação do tratado de Tordesilhas, aplicando-o agora ao sistema político, alimenta uma escolha sem retorno de empobrecimento da democracia. Mais, quem está desse lado, tira representação não só a sensibilidades e opiniões mas a partes do país – o interior, sempre útil para defender retoricamente, será o que mais perde em termos relativos com operações de engenharia eleitoral como as que voltam a estar em cima da mesa.

Este é um debate importante se tiver como horizonte o reforço e a qualificação da democracia. Que ele apareça à trouxe-mouxe, a meio ano de eleições, é o pior serviço que se pode fazer à democracia. E a este debate, já agora.

 


 
 
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José Manuel Pureza



 
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