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24-02-2021        Público

O termo pode não ser cientificamente rigoroso quando aplicado a Portugal, mas tratando-se de imaginar um regime, uma sociedade onde palavras como “greve”, “direitos” ou “liberdade” só em segredo se pronunciavam, e mesmo assim quase sempre precedidas de breves olhares preventivos pelo canto do olho, é preciso ser-se muito frio e distante para que o esforço de “higienização” do conceito prefira substitui-lo por “regime autoritário” ou “conservador”. E mesmo a palavra “ditadura”, porventura mais apropriada, soa ainda a desculpabilização, porque de algum modo surge como algo mais tolerável. Enquanto o “fascismo” carrega logo toda a violência e malvadez que subjaz a um sistema que persegue, que cala, que amedronta, que agride e oprime uma população inteira.

Eu sou de um tempo em que pude observar e sentir esse clima, quando em criança, no Alentejo dos anos sessenta, nos escondíamos a tremer de medo, mal se vislumbrava a presença da Guarda (GNR), uma brigada montada no alto dos seus cavalos brancos. Aquelas rondas por caminhos térreos personificavam a sociedade vigiada em que nos encontrávamos encarcerados. Uma vigilância seletiva, claro, que fustigava acima de tudo os famintos e os trabalhadores (dos campos ou das minas), que em geral eram os mesmos. Os meus tios e primos que o digam, quando foram levados pela PIDE por reivindicarem melhores salários nas minas de Aljustrel. Lembro-me desses GNRs, impantes, a tratar por tu gente respeitada que não conheciam, ou a saírem sem um obrigado depois de fausta refeição (obviamente gratuita) numa divisória discreta na taberna dos meus pais. Recordo ainda um desgraçado que tinha sido preso (talvez apenas pelo “crime” de não ter morada nem profissão certa), com as mãos algemadas atrás das costas, a tentar acompanhar o andamento dos animais, com aquele olhar perdido, aqueles pés a sangrar entre a poeira que cobria umas alpercatas a desfazerem-se.

É por estas e por outras cenas semelhantes, gravadas na memória de sucessivas gerações, que o Povo saiu à rua com a maior das alegrias coletivas quando, com os cravos a colorir as espingardas ou nas mãos de tantos milhares de portugueses, celebrámos o fim da ditadura, gritando bem alto “Fascismo nunca mais!” Ora, esse clamor coletivo e libertário não foi em vão. Foi um grito, aliás, que se repetiu até à exaustão e cujos ecos perduraram durante mais de quatro décadas, mantendo Portugal como um aparente “oásis” europeu sem grupos, movimentos ou partidos que fizessem ressoar qualquer referência àqueles tempos sombrios. Com tantas bandeiras vermelhas desfraldadas no 25 de Abril, as emoções e os ideais utópicos falaram mais alto e viveu-se então, com exaltação febril, a banalização do antifascismo. As antinomias esquerda/direita ou socialismo/fascismo encontraram terreno fértil nessa paisagem algo onírica, e ao mesmo tempo perigosa, que nos dividiu ao meio e quase nos atirou para uma guerra fratricida. É certo que a banalização do antifascismo incluiu também ações persecutórias e injustas, mas na época a memória do “fascismo” era uma realidade bem próxima e era real o risco de se voltar atrás, enquanto a cultura democrática estava ainda no grau zero.

Hoje assistimos, pelo contrário, a uma “banalização do fascismo”, e isso ocorre segundo duas perceções diferentes (claro que muitos têm fortes razões de queixa da democracia, mas os mais ressentidos nem são esses): uns que, vivendo sempre em liberdade, não admitem a mínima restrição aos seus movimentos e deixam-se radicalizar ou indignar porque acham que é uma maçada enorme usar uma máscara ou não poder encontrar-se com os amigos do costume, nas festas e borgas do costume; outros que se deixaram intoxicar de democracia e hoje se viram contra ela, atribuindo a outros “eles” a responsabilidade pela sua própria resignação e impotência. A democracia, por seu lado, não soube responsabilizar os cidadãos e estimulá-los a aprofundá-la, a cuidá-la e a dar mais força e vigor à cidadania, às instituições e aos governantes; e agora uma parte significativa desses cidadãos vira-se contra o regime democrático e até já o confunde com o seu principal oponente, chamando-lhe “fascismo”.

Um destes dias tive um breve confronto verbal com um desses “indignados”, um “negacionista”, ou melhor, alguém que, sem negar a existência do vírus, nega a sua gravidade e a necessidade de medidas de recolhimento, como no atual estado de emergência. Mas o mais grave é a facilidade com que tanta gente – mesmo jovens instruídos e com formação superior, como era o caso – estabelece uma correspondência entre a atual situação e o regime “fascista”. Entrei numa pequena mercearia onde no momento estavam mais dois clientes, o proprietário e uma empregada, todos com a máscara colocada; esperando na fila, com o devido distanciamento, surgiu uma brigada da polícia que fazia o controlo quanto ao respeito das regras sanitárias. Tudo estava em ordem, tendo a brigada policial revelado uma atitude correta, pedagógica e afável. Após a saída dos dois policias, o jovem que estava inquieto atrás de mim na fila logo começou a barafustar: “é inadmissível!...; estamos no fascismo! Isto é fascismo!”, queixou-se de ter sido interpelado pela mesma brigada quando, minutos antes, conversava com um amigo no banco do jardim, e insistia com convicção: “isto não pode ser!... isto é o fascismo!”.

Numa situação como esta, alguém que tenha vivido uma parte da sua vida durante o salazarismo e que tenha memória desses tempos obscurantistas e repressivos não pode evidentemente ficar calado. Tive de o interpelar: “Você tem ideia do que é o fascismo?!... pelas suas palavras e pela sua idade, notoriamente não sabe o que é ou o que foi o regime fascista!”, respondi. Seguiu-se um breve bate-boca à porta da mercearia com a mesma brigada da policia a assistir, silenciosa e à distância. Queixava-se o nosso jovem, um doutorando bolseiro na área da biologia e dos ecossistemas, que teria sofrido retaliações da chefe do departamento onde trabalha, por ter publicado um “paper” a criticar as atuais medidas e com argumentos “fora da caixa” quanto às condicionantes ambientais de propagação da covid-19. Estava notoriamente irritado e provavelmente com razões para isso, dados os comportamentos abusivos e prepotentes que se disseminaram em muitos departamentos académicos. Uma parte da juventude portuguesa, que já nasceu em democracia, interiorizou tão naturalmente os seus direitos e liberdades individuais que não admite a mínima restrição. Perante o confinamento prolongado que vivemos, os níveis de stress aumentam em exponencial, e a irritação coletiva torna-se contagiosa. E nessas condições qualquer análise ponderada e racional é infrutífera (troca de ideias, sim, mas não com quem já estiver radicalizado).

O meu interlocutor pode até ter sido vítima de comportamentos despóticos (que numa democracia madura já deveriam ter sido banidos), mas, como lhe disse, se estivéssemos num regime fascista o artigo controverso não seria sequer publicado e, caso protestasse muito, acabaria provavelmente na prisão... A facilidade com que certas vozes catalogam, que de tudo e de nada acusam o governo (passam num ápice da acusação de facilitismo para a de excesso de zelo), insere-se no mesmo caudal persecutório animado pela extrema-direita, que culmina na condenação do regime democrático. Alguns apelidam-no de fascismo, mas já soam as novas “fénixes” que invocam como maior estigma o anátema do “socialismo” como a causa de todos os males. Contra isso, o melhor antídoto é o fortalecimento, a transparência e a maior eficácia do Estado e das instituições democráticas. Mas banalizar o nome é branquear a memória de um tempo de trevas que não pode repetir-se.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
fascismo    sociedade    democracia