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09-10-2019        Público

Assistimos no passado domingo a uma vitoria da esquerda. Mas, embora o PS seja a força hegemónica e a principal beneficiária deste resultado, a esquerda que ganhou as eleições é plural. Depois da “Geringonça I”, poderá surgir uma “Geringonça II”, seja esta mais consistente e estável ou mais frágil e instável do que a anterior. Se na sociedade, na economia e na política a vida é sempre e necessariamente dinâmica, é bom que se assuma o “equilíbrio instável” como cenário desejável, porque essa condição é a pedra de toque das democracias avançadas. Sem divergência não se criam consensos e o monolitismo de pensamento é inimigo da criatividade e da inovação.

Nestas eleições, os portugueses emitiram uma mensagem clara ao poder político: perto de metade do eleitorado já não acredita nem nos partidos nem nas instituições democráticas em geral; os eleitores do PS e da esquerda, de certo modo, referendaram a continuação da “geringonça”. No essencial, disseram à classe politica que não querem correr o risco de voltar atrás na reposição de direitos e na proteção social. Os tempos da austeridade violenta deixaram um profundo trauma na sociedade portuguesa e ficou claro que a direita conservadora ou neoliberal (personificada no governo PSD/CDS liderado por Passos Coelho) não merece a confiança do eleitorado na sua grande maioria. O PSD e o CDS, que antes somavam 107 (89+18) deputados, têm agora 82 (77+5) e o seu braço mais à direita (CDS) regressou aos tempos do “partido do táxi” (cinco deputados, quando antes tinha 18). 

O PS foi sem dúvida o principal vencedor destas eleições, pois soma mais 20 deputados, pelo menos, aos 86 que já tinha (106 já eleitos mais um ou dois dos círculos internacionais ainda por apurar). Liberto do anterior estigma de ter governado sem ter ganhado as eleições, o PS pode agora assumir mais claramente a sua politica de esquerda (com contas equilibradas). Não foi em vão que a referência às “contas certas” esteve tão presente nos debates, inclusive na boca de Catarina Martins (BE). A esquerda, ao contrário da direita, preocupa-se com os direitos dos mais fracos e não apenas com o poder e riqueza dos mais fortes, seja em nome do “sucesso” dos “empreendedores” seja, por outro lado, na defesa do nacionalismo, autoritário ou conservador. Mas o reformismo de esquerda que o PS corporiza é hoje das raras forças políticas europeias que pode orgulhar-se de, além do combate às injustiças sociais e da defesa do emprego (se bem que este esteja longe da qualidade e dos direitos que uma politica de esquerda requer), mostrar eficiência e sentido realista para gerir os constrangimentos externos do capitalismo internacional e respeitar os compromissos com a UE.

Os novos partidos com representação parlamentar, com dois à direita (Chega e IL), um à esquerda (Livre) e um que se diz neutro (PAN), imprimem à AR uma nova dinâmica e espera-se que tragam um novo colorido à linguagem política do Parlamento. Isso é positivo. Mas esta nova direita em crescendo levanta perplexidades que importa não menosprezar: a Iniciativa Liberal, a querer cavalgar o individualismo, o mito da meritocracia e a retórica do “anti-estatismo”, não creio que tenha grande futuro num país de cultura católica como Portugal; o dito Chega (cujo nome indicia já a linguagem radical de quem se propõe fazer “a limpeza”…), ao tentar apanhar a onda populista de extrema-direita – uma espécie de ideologia de “caixa de mensagens” – que cresce em vários países europeus, revela sinais preocupantes com os seus apelos antiparlamentares, a sua sanha xenófoba e tiques protofascistas a virem ao de cima em diversos pontos do seu programa. Já o Livre, de Rui Tavares, poderá vir a crescer se a mensagem do eco-socialismo e o projeto europeísta com mais cidadania ativa ganharem mais fulgor no ciclo político que agora se inicia. 

Perante este pano de fundo, o PS tem à partida duas opções, presumindo que uma terceira, a aproximação ao centro com o PSD, se mostra, por ora, descartável. Cenário A: governar sozinho com acordos pontuais, sobretudo na aprovação dos orçamentos, uma abstenção agora, um voto a favor mais adiante, uma aproximação ao PSD num ou noutro momento, com mais gritaria, greves e manifestações em pano de fundo nos ciclos habituais em cada ano político, etc. Esta hipótese, que pode parecer tentadora num momento triunfal, dado o peso político reforçado dos socialistas, é arriscada e desgastante, correndo o risco de nos afastar de um verdadeiro programa de convergência com a UE e continuar em regime de “navegação à vista”, como em boa verdade aconteceu no passado ao longo de décadas. Cenário B: continuação da “geringonça” com novos contornos, baseada em acordos estratégicos envolvendo PS, PCP e BE, eventualmente também o PAN e o Livre, na base dos grandes princípios e propostas negociadas sobre cada programa (questões laborais, SNS, educação, ciência/inovação, ambiente e políticas energéticas, etc.), preservando como nos últimos quatro anos a identidade de cada partido. Uma esquerda plural e mais irreverente, apesar de uma eventual intensificação da retórica e da conflitualidade no quadro parlamentar, poderá unir-se no combate ao populismo, na denúncia dos riscos ambientais, na insensibilidade social da direita e, inclusive, estimular ideias e programas inovadores, capazes de contagiar outros parceiros europeus e ganhar impacto internacional. Os desafios dos atuais bloqueios europeus, um tema incompreensivelmente omisso no debate eleitoral, não podem continuar alheios ao debate político nacional.

Apesar de uma orientação mais consentânea com os valores socialistas (um socialismo democrático, mas abertamente de esquerda) não agradar a uma parte minoritária do PS, é importante que tais referências sejam assumidas sem tabus nem cedências “centristas” por parte da liderança de A. Costa, agora consolidada. Os portugueses mostraram mais uma vez nestas eleições que querem reformas progressistas e politicas sociais que devolvam coesão à sociedade, que reduzam as desigualdades e ofereçam efetivas condições de aproximação aos padrões europeus em matéria salarial, de produtividade e de condições de vida. Os portugueses, tal como os franceses, espanhóis, alemães, etc., não abdicam do direito a um Estado providência que lhes ofereça segurança e uma perspetiva de futuro para os seus filhos. O capitalismo financeiro e mercantilista, a privatização alargada de serviços públicos, a submissão ao ordoliberalismo ou mesmo o recuo populista para os Estados-fortaleza, já mostraram ser bandeiras da direita que empurram a Europa para um beco sem saída.

Os resultados do passado dia 6 de outubro em Portugal colocam-nos perante novos desafios e podem abrir novos horizontes ao campo da esquerda. Em vez de exorbitar as calamidades e as crises estruturais ou o clamor pelo iminente “fim do capitalismo”, coisa que se repete há pelo menos 200 anos, a Europa carece de uma efetiva prática política de esquerda. Uma esquerda transformadora tem de ter um pé nas instituições democráticas, outro na sociedade e nas lutas sociais. Não sabemos se o PS tem condições de protagonizar um tal papel. Mas este PS pode abrir caminhos de futuro a uma esquerda reformista (mas radical), uma esquerda sonhadora e transformadora, mas realista. Realista também na consciência das corrosões e perversões oligárquicas dos seus aparelhos. Uma esquerda, enfim, que finalmente mostre capacidade para travar a tendência de queda no abismo das atuais democracias ocidentais.


 
 
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Elísio Estanque