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15-06-2018        Público

Regresso à questão que tem vindo a público sobre o decreto lei que permite a um conjunto de engenheiros assinar projetos de arquitetura. Infelizmente, para refletir sobre o incompreensível desfecho que o assunto teve, com a promulgação do Decreto n.º 206/XIII pelo Presidente da República. De facto, o Presidente abandonou os arquitetos depois de ter sido o rosto e a voz mais empenhada na sua defesa, assim como na da própria arquitetura portuguesa.

Nas primeiras intervenções do Presidente da República ficou muito claro que não se tratava de negociar situações de exceção, mas sim de afirmar um princípio fundamental de atribuir aos arquitetos o exercício da arquitetura, direito que conquistaram através da formação em cursos de Arquitetura. Esta exceção já tinha sido, aliás, negociada com a lei de 2009, dando a possibilidade a estes engenheiros de se formarem em Arquitetura e assim exercerem a atividade de arquiteto de pleno direito. Este prazo terminava em 2015, mas foi prorrogado até 2018, garantindo assim os eventuais, ainda que discutíveis “direitos adquiridos”. Muitos engenheiros seguiram este caminho e deverão estar hoje bastante desiludidos pelo modo como foram enganados, porque afinal não era necessário cumprir a lei.

De facto, a formação em Arquitetura é exigente e diversa, porque é simultaneamente artística, social e técnica, o que implica um posicionamento aberto perante os problemas. Quem não percorreu este percurso poderá até conseguir licenciar um projeto num município menos atento, mas não poderá com certeza fazer arquitetura, no seu sentido mais amplo e completo.

É de facto um momento paradoxal para a arquitetura e para os arquitetos portugueses. No momento em que diversas instituições internacionais reconhecem o esforço da nossa sociedade e dos nossos arquitetos e arquitetas em contribuir para uma melhor organização do espaço que todos habitamos, a legislação que regula a prática profissional dá um passo atrás. Nas últimas semanas, o “país dos arquitectos”, como referiu o PÚBLICO, foi novamente homenageado ao ver os seus arquitetos presentes e galardoados nos mais prestigiados palcos internacionais.

Por um lado, a Bienal de Veneza atribuiu o Leão de Ouro ao consagrado arquiteto Eduardo Souto de Moura pela sua carreira e, mais concretamente, pela reabilitação exemplar da Herdade do Barrocal para turismo (ver Ípsilon de 2 de junho). Por outro lado, a fundação FAD de Barcelona distinguiu dois projetos de arquitetos (ver PÚBLICO de  7 de junho). O Prémio Cidade e Paisagem para o projeto da Praça Fonte Nova projetada pelo arquiteto José Adrião no âmbito do programa Uma Praça em Cada Bairro e o Prémio Instalações Efémeras para o projeto do pavilhão no parque de Serralves do jovem coletivo depA, realizado no âmbito da Bienal de São Paulo. Estes prémios não são meramente atos excecionais, pelo contrário, eles reconhecem o esforço coletivo de formação em Arquitetura e de formação da própria sociedade, que valoriza o arquiteto e lhe reconhece competências próprias e excecionais. Não há boa arquitetura sem bons clientes ou promotores.

Esta decisão de promulgação do decreto estará marcada pela falta de “consenso”, aspeto que o Presidente da República tinha referido como fundamental para vetar a primeira aprovação enviada pela Assembleia da República. Ela não tem o consenso dos deputados, que se dividiram dentro dos próprios partidos, não tem o consenso da Ordem dos Arquitetos, que “lamentou profundamente a promulgação” (ainda que se espere uma posição mais veemente), não tem o consenso dos arquitetos, que se têm manifestado nas redes sociais, não tem o consenso dos estudantes de Arquitetura, que se manifestaram à porta da Assembleia, e não tem o consenso das escolas de Arquitetura, que se expressaram através de declarações públicas.

Esta promulgação coloca ainda numa posição ambígua duas instituições, os municípios e a Ordem dos Engenheiros. Os municípios, porque os torna responsáveis pela regulação do exercício de uma prática profissional para a qual não têm competência. A Ordem dos Engenheiros, porque aceita que os seus membros realizem práticas profissionais para as quais não estão habilitados.

A sociedade portuguesa e as suas estruturas democráticas saem claramente a perder deste imbróglio legislativo que questiona o seu esforço coletivo em valorizar o ambiente urbano e o território nacional, com políticas públicas que obrigaram a grandes investimentos na reabilitação urbana, na modernização das escolas ou na qualificação da habitação social. Este é, aliás, o tema exposto no Pavilhão de Portugal da já referida Bienal de Arquitetura de Veneza, comissariado por Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah, que pretende valorizar a arquitetura de promoção pública.

Cabe agora a todos os que reagiram a este triste “fim” encontrar os caminhos para contrariar esta decisão e construir novo “consenso” ou um novo “princípio” em torno do papel do arquiteto na sociedade portuguesa.

 


 
 
pessoas
Gonçalo Canto Moniz